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» Volume 73

Número 3

http://dx.doi.org/

Promoção da saúde na escola: discursos, representações e abordagens

RESUMO

Objetivos:

analisar os discursos, representações e abordagens sobre saúde e promoção da saúde na escola, materializados na fala de professores.

Métodos:

estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, realizado com 17 professores da rede municipal e estadual de ensino. Os dados foram obtidos de entrevistas e analisados pela Análise de Discurso Textualmente Orientada.

Resultados:

predominaram os discursos médico-sanitário e clínico-biológico. A saúde é representada como a ausência de doença, repercutindo em abordagens que priorizam hábitos saudáveis e mudanças de comportamento. A problematização dos determinantes sociais ocorre nos projetos, em parceria intersetorial.

Considerações Finais:

a realização de projetos de promoção da saúde na escola prescinde da solidificação de parcerias e da construção de novos discursos, que a represente como qualidade de vida condicionada por fatores sociais, econômicos e culturais, assim como estratégias para o reposicionamento ideológico daqueles atores que atuam nesse cenário.

Descritores:
Promoção da Saúde; Saúde na Escola; Discursos; Determinantes Sociais da Saúde; Colaboração Intersetorial

ABSTRACT

Objectives:

to analyze speeches, representations, and approaches on health and health promotion in schools, materialized in the speech of teachers.

Methods:

a qualitative study, of the case study type, carried out with 17 teachers from the municipal and state educational network. The data were obtained from interviews and analyzed by the Content-Oriented Discourse Analysis.

Results:

medical-sanitary and clinical-biological discourses predominated. Health is represented as the absence of disease, reflecting approaches that prioritize healthy habits and changes in behavior. Problematization of social determinants occurs in projects, in an intersectorial partnership.

Final Considerations:

carrying out projects of health promotion in schools ignores the solidification of partnerships and the construction of new speeches that represent it as quality of life conditioned by social, economic, and cultural factors as well as strategies for the ideological repositioning of those actors who act in this setting.

Descriptors:
Health Promotion; School Health Services; Addresses; Social Determinants of Health; Intersectoral Collaboration

RESUMEN

Objetivos:

analizar los discursos, representaciones y enfoques sobre salud y promoción de la salud en la escuela, materializados en el habla de profesores .

Métodos:

estudio cualitativo, del tipo estudio de caso, realizado con 17 profesores de la red municipal y estadual de enseñanza. Los datos fueron obtenidos de entrevistas y analizados por el Análisis de Discurso Textualmente Orientada.

Resultados:

predominaron los discursos médico-sanitario y clínico-biológico. La salud se representa como la ausencia de enfermedad, repercutiendo en enfoques que priorizan hábitos saludables y cambios de comportamiento. La problematización de los determinantes sociales ocurre en los proyectos, en sociedad intersectorial.

Consideraciones Finales:

la realización de proyectos de promoción de la salud en la escuela prescinde de la solidificación de alianzas y de la construcción de nuevos discursos que la represente como calidad de vida condicionada por factores sociales, económicos y culturales, así como estrategias para el reposicionamiento ideológico de aquellos actores que actúan en ese proceso paisaje.

Descriptores:
Promoción de la Salud; Salud en la Escuela; Discursos; Determinantes Sociales de la Salud; Colaboración Intersectorial

INTRODUÇÃO

No cenário mundial, a discussão a respeito da promoção da saúde foi fortalecida em eventos internacionais que lançaram novas propostas na redefinição das políticas públicas, direcionando um novo olhar para o contexto da saúde. Como marco desse movimento, a Conferência de Ottawa ratifica a ideia de saúde como qualidade de vida, condicionada por vários fatores como: paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade(1-2).

A escola é um importante espaço para a promoção da saúde, tendo em vista os diversos atores sociais que a compõe, assim como sua propensão à formação de sujeitos-cidadãos com grande potencial para autonomia, participação e transformação social(3). Nessa perspectiva, uma das características que a compatibiliza com os eixos das ações para a promoção da saúde é o de ser capaz de desenvolver a consciência cidadã e a capacidade de intervenção no âmbito social(4-6).

No que concerne as questões da saúde, a escola, por muito tempo, foi utilizada exclusivamente para o desenvolvimento de atividades de cunho preventivista, com ações voltadas ao modelo biológico da clínica, influenciando abordagens direcionadas ao indivíduo, com metodologias verticalizadas, conteúdo disciplinadores e desconectados do contexto sócio-político-cultural(7-8). Contudo, estudos revelam uma abertura a mudanças positivas, em relação aos determinantes e condicionantes sociais do processo saúde/doença(4,9).

Nessa perspectiva, a saúde na escola tem avançado de maneira sincronizada com o conhecimento técnico-científico e o desenvolvimento sócio-político, superando gradativamente o paradigma biomédico, sobretudo quando utiliza abordagens que permitem uma aproximação com seus atores e a problematização das situações demandas pelo seu contexto(10-11). Nesse sentido, afirma-se que a discussão sobre os conceitos e princípios da promoção da saúde tem contribuído para a renovação do discurso sanitário no espaço escolar, pela contraposição ao modelo biomédico e resgate da determinação social do processo saúde/doença, ainda que tais ideais estejam bem distantes de se tornarem hegemônicos(12).

Diante do exposto, direcionamos esta pesquisa a partir da seguinte questão norteadora: quais discursos, representações discursivas e abordagens sobre a saúde e a promoção da saúde predominam na escola?

OBJETIVOS

Analisar os discursos, representações e abordagens sobre saúde e promoção da saúde na escola, materializados na fala de professores.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo respeitou as exigências formais contidas nas normas nacionais e internacionais regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. O estudo obteve Parecer favorável de nº 1.913.074, em 07 de fevereiro de 2017.

Referencial teórico-metodológico

A pesquisa sustentou-se no referencial do Materialismo Histórico e Dialético(13).

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa do tipo estudo de caso(14), utilizando-se a abordagem qualitativa. O estudo foi desenvolvido segundo os preceitos do COREQ (para pesquisas qualitativas).

Procedimentos metodológicos

Participaram do estudo 17 professores, dos quais, 12 eram do sexo feminino e com idades entre 28 e 51 anos. Desses, oito eram da escola estadual e nove da escola municipal. O vínculo institucional variou entre seis meses e 28 anos. A aproximação inicial se deu por meio das reuniões da rede comunitária, seguida por visitas às escolas. Como critério de inclusão, estabeleceu que os participantes deveriam apresentar, no mínimo, seis meses de vínculo profissional com a escola. Foram excluídos aqueles que estavam afastados das atividades laborais por mais de 30 dias.

Cenário do estudo

Realizado em duas escolas, uma estadual e outra municipal, em um bairro da zona oeste do município de João Pessoa, Paraíba, Brasil, no período de fevereiro a julho de 2017. O território apresenta áreas de vulnerabilidade social, como as comunidades ribeirinhas, elevado índice de desigualdade social e violência, especialmente devido ao tráfico de drogas. Na comunidade, existe uma rede comunitária e coletiva que promove e apoia ações com foco educacional, assistencial e na saúde. É composta por representantes de instituições operantes no território, incluindo as escolas participantes do estudo. Essas escolas recebem ações do Programa Saúde na Escola (PSE) e projetos desenvolvidos por Organizações Não Governamentais (ONGs) que fazem parte da rede comunitária local.

Coletas e organização dos dados

A coleta dos dados aconteceu através de entrevistas semiestruturadas que ocorreram individualmente, sendo observada a privacidade dos respondentes. Para nortear as entrevistas, construiu-se um roteiro contendo as seguintes questões: como você percebe a saúde na escola? Quais e como as ações de promoção da saúde são desenvolvidas pela escola? Em respeito ao anonimato, elaborou-se um código alfanumérico para identificar as falas, o qual apresenta as iniciais de cada escola participante, seguido pelo número que indica a ordem de realização da entrevista. Assim, atribuiu-se aos representantes da escola estadual as iniciais “REE” e, para os representantes da escola municipal, “REM”.

Análise dos dados

O processo de análise ocorreu pela Análise de Discurso Textualmente Orientada (ADTO) proposta por Norman Fairclough. Situada na tradição da pesquisa qualitativa devido ao foco na análise detalhada de textos e discursos, essa análise volta-se para o debate de um determinado problema social, fazendo sua contribuição no que tange à reflexão sobre o mesmo, diferenciando-se das demais abordagens, sobretudo, por permitir apresentar além do conhecimento crítico, a emancipação dos sujeitos das formas dominantes, mediante a autorreflexão(15).

O propósito da análise crítica é mapear conexões entre escolhas de atores sociais ou grupos, em textos e eventos discursivos específicos. Cada pessoa tem sua prática social única, na qual, a linguagem se manifesta como discurso, ou seja, como parte irredutível das maneiras de agir, interagir, representar e identificar a si mesmo, os outros e os aspectos do mundo por meio da linguagem, a qual se mostra como importante recurso para o estabelecimento e sustentação de relações de dominação e/ou para a contestação e superação de tais problemas(16).

O modelo tridimensional da ADTO distingue três dimensões do discurso: o texto, a prática discursiva e a prática social. A análise do texto é pormenorizada em categorias de análise textual, ou seja, formas e significados textualmente associados a maneiras de representar, interagir e identificar-se em práticas sociais situadas e que auxiliam no mapeamento das relações dialéticas entre o discursivo e o social, permitindo a investigação dos efeitos característicos de textos em prática sociais, e vice-versa. A prática discursiva varia entre os diferentes tipos de discurso, sendo determinado pelos fatores sociais intrincados, os processos de produção, distribuição e consumo do texto, e a análise da prática social, que relaciona-se aos aspectos ideológicos e hegemônicos na instância discursiva analisada(15).

Para operacionalizar a análise, construiu-se um esquema constituído por três etapas: 1. Transcrição dos dados; 2. Codificação e categorização; e 3. Crítica explanatória. As categorias analíticas identificadas nos textos que reafirmam os discursos naturalizados, nas falas dos participantes, foram a presunção valorativa, a avaliação, a modalidade e a metáfora.

A presunção valorativa diz respeito à construção de significados dependentes tanto do que está explícito no texto, quanto do que está implícito ou presumido, esses últimos são de particular relevância ideológica. A avaliação é uma apreciação ou perspectiva do locutor, mais ou menos explícita, sobre aspectos do mundo, sobre o que considera bom ou ruim, ou o que deseja ou não. Quando processos avaliativos envolvem posicionamentos ideológicos, podem atuar em favor de projetos de dominação. A modalidade é associada a um traço semântico essencial: a polaridade, resumindo-se em um posicionamento pessoal na escolha entre o positivo ou negativo. Por último, a metáfora é a estrutura que molda significados identificacionais em textos, posto que ao selecionar tal figura de linguagem em um universo de outras possibilidades, o/a locutor/a compreende sua realidade e a identifica de maneira particular(16).

Foram identificados, na análise, fragmentos textuais que, agrupados, conformaram três discursos materializados nas falas dos participantes: - o discurso médico-sanitário, que representa a saúde como ausência de doença, cuja abordagem da promoção da saúde é individual e focada em ações de higiene corporal; - o discurso clínico-biológico, que representa a saúde como prevenção do risco e adoecimento, cuja abordagem é grupal e focada em atividades de prevenção, como palestras sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), vacinação, etc.; - o discurso dos determinantes sociais, que representa a saúde como qualidade de vida, participação e cidadania, e com abordagem comunitária, através de atividades dentro e fora da escola focadas na formação cidadã, na advocacia, no protagonismo infanto-juvenil, etc. Essas atividades foram apresentadas nos Quadros 1, 2 e 3.

RESULTADOS

Quadro 1
Discurso médico-sanitário: representação da saúde como ausência de doença. Abordagem individual e focada em ações de higiene corporal
Quadro 2
Discurso clínico-biológico: representação da saúde como prevenção do risco e adoecimento. Abordagem grupal e focada em atividades de prevenção, como palestras, vacinação, etc.
Quadro 3
Discurso dos determinantes sociais: representação da saúde como qualidade de vida, participação e cidadania. Abordagem comunitária, com atividades dentro e fora da escola focadas na formação cidadã, na advocacia, no protagonismo infanto-juvenil, etc.

DISCUSSÃO

A representação da saúde, pelos atores no Quadro 1, traduz-se no discurso que remete ao modelo higienista de saúde escolar. Esse modelo remonta ao início do século XX, sendo organizado em um contexto de epidemias, no qual era imprescindível a disciplina nas condutas individuais e comportamentais de estudantes. Ao postularem a saúde como ausência de doença, sem considerar as questões do contexto social como determinantes desse processo, os participantes ratificam o paradigma do modelo médico-sanitário como hegemônico em suas práticas sociais, necessitando de novas reconfigurações discursivas para serem superadas(17).

No relato de REM 02, [...] têm casos individuais muito sérios na questão da higiene de cabelo, né? Da dentição mesmo... do corpo, tal [...], a presunção valorativa marca um sentido ideológico fortemente atribuído ao cuidado corporal, típico do discurso médico-sanitário. Acentua-se pela ausência de elementos que poderiam estar relacionados às causas do comprometimento da higiene dos alunos, como, por exemplo, as condições do contexto social no qual estão inseridos. A omissão dos determinantes sociais reafirma a representação do adoecimento como encargo individual e a escola como espaço orientador/disciplinador de condutas adequadas à adoção de hábitos/práticas saudáveis.

No excerto, [...] o principal que a gente acha assim que é onde tem que falar mais [...], do relato de REE 04, há presença de um aspecto discursivo de avaliação valorativa da abordagem à prática da higiene na escola, o que demonstra um comprometimento desejável por parte do participante, com a existência de tal abordagem na escola.

Além disso, a hesitação e as modalidades, [...] assim, né... eu acho que ((risos)) eu compreendo; [...] dos, dos... deixa eu ver [...]; [...] já vem da, da ... de [...]; [...] a gente acha, assim [...], nos relatos de REM 07 e REE 04, confirmam o ponto de vista e comprometimento dos falantes com a posição de manutenção da lógica que responsabiliza e individualiza pessoalmente as pessoas pelas questões da saúde, em um nexo que atribui a escola a importante missão de [...] mostrar, apresentar, chamar a atenção do aluno [...] para essa realidade, conforme expressa REE 04.

O discurso médico-sanitário, articulado nos relatos dos representantes das escolas, evidencia como essa tendência é ainda reproduzida na atualidade, apesar das mudanças conceituais e metodológicas que incorporaram o conceito de promoção na saúde pública, nas últimas décadas(1-2).

Ao manter e reproduzir práticas higienistas na abordagem dos temas da saúde, a escola reafirma-se como aparelho de manutenção de hegemonias, como os saberes e práticas fundados exclusivamente na clínica e no biológico(4), as quais constituem-se como elemento de contradição nas abordagens da saúde na escola. Em uma outra possibilidade, a escola deveria ser espaço para a problematização dos determinantes sociais, partindo das questões relacionadas à realidade local e produzidas pelos problemas complexos do seu entorno, para imprimir a redefinição de novas concepções e saberes empregados à transformação de realidades(3).

A compreensão da escola como ambiente favorável à promoção da saúde, passa pelo entendimento desse espaço como potencial para a discussão dos determinantes sociais. Nessa direção, no contexto da América Latina e Caribe, destaca-se a Iniciativa Regional de Escolas Promotoras de Saúde, lançada oficialmente no ano de 1995, pela Organização Pan-Americana da Saúde e Oficina Regional da Organização Mundial da Saúde(5-6).

As Escolas Promotoras da Saúde atendem às interfaces do espaço escolar com a sociedade e o compromisso com as condições de vida das populações. Sob esse ponto de vista, a promoção da saúde nas escolas compreende três componentes principais: a educação em saúde com enfoque integral; a criação de entornos saudáveis; e a provisão de serviços de saúde(6).

O Brasil tem fortalecido suas ações de promoção da saúde na escola, revendo as atividades desenvolvidas no campo da saúde escolar, por meio da articulação dos setores educação, saúde e a sociedade, com ênfase na ação protagonista da comunidade escolar na identificação das necessidades, problemas de saúde e na definição de estratégias para abordá-los e enfrentá-los(5).

Para aproximar-se da saúde, na perspectiva ampliada, que considera os determinantes sociais, conforme preconizados na Carta de Ottawa, no Sistema Único de Saúde (SUS) e nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), os profissionais da escola, especialmente os professores, precisam refletir sobre sua prática em um movimento autorreflexivo que permita desnaturalizar velhas concepções reducionistas, as quais reproduzem formas de pensar as questões da saúde, de maneira desarticulada das reais condições que as determinam. Precisam, ainda, adotar abordagens educativas inclusivas e participativas, necessárias à construção integrada do conhecimento sob uma perspectiva cidadã(1,18).

Nesse contexto, a escola tem papel político basilar, por ser o cenário que favorece a desconstruções de velhos paradigmas, bem como a construção de discursos pela incorporação de novos saberes, seja por meio da transmissão de valores e crenças, ou pelo fato de a sua natureza, essencialmente educativa, servir como um ambiente propício para o desenvolvimento de ações que constroem e solidificam não apenas hábitos, mas, sobretudo, atitudes com potencial transformador(3).

A abordagem das questões de saúde, na escola, tem sido realizada especialmente do ponto de vista do controle e da prevenção do adoecimento, e de situações de risco e agravos à saúde, sob uma perspectiva de vigilância epidemiológica e assistência clínico-terapêutica. Com isso, há a valorização ideológica do conhecimento científico como prática hegemônica(17).

A representação da saúde, na lógica da prevenção do risco e do adoecimento, no Quadro 2, favorece abordagens cujo enfoque é grupal, com ações voltadas principalmente para o público de adolescentes com discurso clínico-biológico. Na perspectiva desse último, enquadra-se a maioria das atividades do PSE, como a vacinação, as palestras ministradas pelos profissionais da saúde sobre ISTs, gravidez na adolescência e drogas, além dos projetos voltados à Semana de Alimentação Saudável, cuja finalidade é o favorecimento de hábitos saudáveis e mudança de comportamento.

Não surpreende o fato de os conteúdos relacionados à saúde, integrados ao currículo, serem atribuídos como responsabilidade dos componentes Ciência e Biologia, disciplinas que aproximam os estudantes aos temas da saúde, exclusivamente na lógica do biológico e do patológico, reafirmando a hegemonia desse campo de saber sobre os demais(16). Conforme relato de REE 03, [...] a matéria que mais fala sobre a saúde é Ciência e Biologia que estuda corpo humano [...] ele sempre fala é... sobre essas doenças: HPV, sobre o mosquito que transmite a Zica, a Dengue, Chikungunya [...] tem também é... para prevenção, a AIDS também, o HIV é só sobre esse tipo de doenças mesmo [...].

As questões relacionadas à educação em saúde, que não são problematizadas ou resolvidas pela escola, tendem ter, como única alternativa, os serviços de saúde, com a expectativa de resolvê-los sob a ótica médica. Por outro lado, a pauta da multicausalidade do processo saúde-doença exige a necessidade de se considerar a complexidade dos determinantes sociais da saúde, o que requer estratégias de enfrentamentos que demandam ações amplas, capazes de articular diversos setores para empreendimentos bem sucedidos(17).

Nesse contexto, o PSE, na sua proposta intersetorial, deve operar uma abordagem de saúde na escola, na perspectiva de um trabalho articulado entre a educação, a saúde e a sociedade, com expectativa de superação do paradigma de saúde escolar higienista(5). Entretanto, os resultados deste estudo permitem afirmar que há uma contradição estabelecida nas práticas sociais dos participantes, na qual percebe-se a manutenção de ações que reforçam o aspecto preventivista e terapêutico como prioridades na agenda de atividades da escola, incluindo aquelas em parceria com a unidade de saúde.

Tais práticas ainda se constituem balizadoras das abordagens da saúde no ambiente escolar, quando já deveriam ter sido superadas. O silenciamento quanto aos determinantes sociais, nas falas dos participantes, firma a presença de interdiscurso que articula os discursos hegemônicos da biomedicina e da higiene escolar. Por outro lado, a percepção ampliada da saúde considera as condições de vida das pessoas como fator indispensável para a qualidade de vida(9).

Nessa arena de lutas de saberes e conhecimentos, fala-se a partir da posição que se toma no embate ideológico. Ao tratarem a situação das doenças transmitidas pelo mosquito, as ISTs e a gravidez na adolescência, como situações permanentes e naturais, os professores fazem uso de um dos modos de operação da ideologia, a reificação. A reificação é empregada pelas estratégias de construção simbólica da nominalização/passivação, que presta a concentrar atenção à determinadas temáticas naturalizadas nas falas dos sujeitos, de forma que haja prejuízo daquelas que não foram colocados para discussão, as quais, na maioria das vezes, são os determinantes das situações-problema existentes no contexto e entorno da escola(16).

Essa afirmação é confirmada nas falas que omitem a determinação histórica, social e cultural que produzem as condições que favorecem a proliferação dos mosquitos, como a falta de políticas públicas e saneamento adequado, distribuição de renda, entre outras, apagando-se a responsabilidade do Estado com essas questões. Por outro lado, coloca-se em evidência a responsabilidade exclusiva da comunidade, na manutenção do seu ambiente saneado.

Na mesma lógica, as ISTs e a gravidez na adolescência, ao serem abordadas sem considerar os fatores culturais e sociais, como a distribuição de renda, acesso a serviços de saúde de qualidade, falta de investimento em ações que valorizem e motivem a juventude para a construção de projetos de vida, enfatiza-se a responsabilidade dessa problemática exclusivamente para os adolescentes.

A presunção valorativa também é identificada no mesmo relato, ao se referir ao trabalho intenso empregado à eliminação do mosquito da Dengue e prevenção de ISTs, conforme excerto, [...] tem um trabalho bastante intensivo em cima disso também, IST né... o trabalho ISTs a gente tem um trabalho bastante intensivo [...]. Há também presunções proposicionais no excerto, [...] eles precisam muito e... com relação mais a isso a essas coisas que os adolescentes precisam...[...], que servem à representação da escola como importante elemento para o enfrentamento dessas problemáticas.

Ainda, é possível identificar a presença da categoria de avaliação, no excerto, [...] é a rede municipal de ensino ela já deixa... já tem isso no calendário então assim é importante, não é? porque alimentação é importante pra saúde...[...], da fala de REM 07, ao se referir à semana de alimentação saudável como atividade de saúde curricularizada na escola. A avaliação, nessa colocação, diz respeito à perspectiva do locutor sobre o que considera bom, no caso, aquilo que é determinado pelo órgão municipal, deixando implícito seu posicionamento ideológico, a favor de projetos focados na responsabilização individual dos estudantes e desvinculados de seu contexto social(16).

Nessa situação, é possível relacionar um posicionamento ideológico-hegemônico no discurso, ao omitir as condições sociais e culturais que influenciam e determinam os hábitos alimentares dessas pessoas. Tal posicionamento se revela, ao atribuir valor à importância da adoção de hábitos alimentares saudáveis e ao referir à Rede Municipal de Ensino como aquela que decide sobre a integração dessa atividade ao currículo da escola.

Discursos e práticas que “objetivam delegar cada vez mais aos sujeitos e grupos sociais específicos a tarefa de cuidarem de si mesmos”, seriam satisfatórias se não houvesse o efeito colateral da desresponsabilização do Estado, no que diz respeito às condições para que esse cuidado se considerasse, de fato, as escolhas dos sujeitos(19).

Apesar da existência de uma lógica higienista e preventivista na trajetória da educação em saúde, com a presença de componentes normativos e conteúdos predefinidos sobre o que deve ser feito e discutido em saúde, nas escolas, têm surgido e consolidado outros sentidos em sintonia com os princípios da promoção da saúde(17). Assim, práticas educativas relacionadas à criticidade da realidade, baseadas em problemáticas locais, com ênfase na formação de sujeitos autônomos capazes de participar e exercer controle das condições de saúde e vida, têm acontecido no contexto das escolas, ainda que de modo incipiente(8).

Contudo, no contexto estudado, isoladamente, a escola parece ser incapaz de mobilizar-se para abordar questões relacionadas aos determinantes do processo saúde-doença, considerando os problemas complexos existentes no seu entorno, os quais são refletidos na sua conjuntura, a exemplo das desigualdades sociais, das violências, etc.

Os achados deste estudo indicam que a abordagem aos determinantes sociais acontece quando há parcerias com as ONGs, por meio de projetos desenvolvidos nas escolas, apoiados pela rede comunitária local, conforme as falas apresentadas no Quadro 3. Reafirma-se, assim, a intersetorialidade como indispensável no processo de recondução das práticas de saúde coletiva(20).

Nessa lógica, as ações de foco mais ampliado, no contexto da escola, como o projeto “Tecendo uma Cultura de Paz” e as caminhadas que acontecem no bairro em alusão à paz e ao combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, realizados em parceria com a Rede, parecem apresentar-se como alternativa aos modelos hegemônicos da higiene escolar e da clínica. Isso porque trazem na sua cartela temas relacionados aos determinantes sociais e voltam-se não apenas aos estudantes, mas também às famílias, profissionais da escola e comunidade.

Outro aspecto percebido, com a incorporação desses projetos à escola, é a intenção de formar protagonistas locais, com vistas ao favorecimento de futuras lideranças na comunidade, levando a participação, condição importante à construção da autonomia dos sujeitos, a uma perspectiva democrática.

A incorporação de práticas que priorizam a discussão dos determinantes sociais aproxima os atores da escola às questões complexas do entorno, as quais se refletem no seu cotidiano e permite a problematização e a crítica das dificuldades resultantes das relações de dominação e ausências do Estado. A autorreflexão gerada, a partir desse debate, pode tornar-se o motor para a produção de novos discursos, imprescindíveis à transformação social próprios de um fenômeno em movimento, na perspectiva dialética.

O discurso desempenha importante papel na mudança social, por permitir a produção, reprodução ou superação de desigualdades e relações de dominação, visto que se fala o que se pratica e vice-versa. A mudança discursiva, nesse sentido, implica a transformação social, haja vista a relação dialética entre as duas dimensões de mudanças(16).

Assim, a manutenção dos discursos hegemônicos da higiene e da clínica na escola coloca em confronto o seu potencial gerador de reflexão e ação para transformação de realidades. A parceria com a Rede, entretanto, emerge como uma proposta intersetorial viável, por somar-se ao enfrentamento das questões complexas do território e viabilizar entre outros pontos, a construção de novos discursos que representam a saúde como garantia de direitos e qualidade de vida. Contudo, o fenômeno está em transformação e, nesse processo, produzem-se sínteses provisórias que permitem acúmulos até a mudança qualitativa.

Limitações do estudo

O estudo apresenta como limitação o fato de ser recorte de um local. São desejáveis estudos mais amplos e que incluam cenários em realidades mais diversificadas.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

O estudo poderá contribuir para a reflexão-ação (práxis) dos profissionais dos setores educação e saúde, a respeito das práticas de promoção da saúde na escola, colaborando com a superação do modelo hegemônico vigente nesse cenário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hegemonia dos discursos médico-sanitário e clínico-biológico, na prática social dos professores, representa a saúde como ausência de doença, a desvincula das questões sociais e atribui responsabilidade individual sobre o adoecimento, determinando uma abordagem à promoção da saúde, na perspectiva da prevenção do risco, com ações focadas na mudança de comportamento, havendo a necessidade de serem superados. Os projetos apoiados pela rede comunitária local revelam-se como iniciativas que oportunizam a problematização dos determinantes sociais do processo saúde-doença, favorecendo a construção de novas representações discursivas sobre a escola como espaço para a formação cidadã.

Desse modo, levar projetos de promoção da saúde à escola prescinde da solidificação de parcerias com os diversos setores e comunidade; da construção de novos discursos que representem a saúde como projeto de cidadania e qualidade de vida; da revisão das abordagens à promoção da saúde na escola, assim como estratégias para o reposicionamento ideológico daqueles atores que atuam nesse cenário, especialmente os professores.

Destaca-se o professor, por ser um importante articulador e multiplicador de novos conceitos e ideias, os quais requerem à sua incorporação, abordagens educativas que permitam reflexão crítica e participação, ferramentas indispensáveis à construção compartilhada do conhecimento empregado à resolução de problemas locais e geração de mudanças.

  • FOMENTO
    Agradecimento especial à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento do Doutorado Interinstitucional e concessão de bolsa de estudos no período de estágio em Belo Horizonte.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2018
  • Aceito
    27 Maio 2019