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» Volume 73

Número 3

http://dx.doi.org/

Assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade no ambiente hospitalar

RESUMO

Objetivos:

Descrever a assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade (PPL) no ambiente hospitalar.

Métodos:

Estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa, realizado com 38 profissionais de enfermagem, entre os meses de março a julho de 2016, em três hospitais regionais localizados no Nordeste do Brasil. Realizou-se a análise de conteúdo dos dados.

Resultados:

Da análise emergiram duas categorias: assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade no contexto hospitalar e autoavaliação da assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade.

Considerações finais:

A assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade no ambiente hospitalar limita-se a procedimentos técnicos, demonstrando um processo-de-trabalho fragmentado e aquém do preconizado pelas políticas públicas vigentes. Identificou-se que a carência estrutural, sobretudo no tocante à segurança no ambiente hospitalar, associada à falta de capacitação dos profissionais para lidar com esta clientela dificultam a assistência de enfermagem nesse contexto.

Descritores:
Assistência de Enfermagem; Assistência Hospitalar; Prisioneiros; Prisões; Saúde Pública

ABSTRACT

Objectives:

To describe the nursing care provided to people deprived of liberty (PDL) in the hospital environment.

Methods:

An exploratory-descriptive study with a qualitative approach, conducted with 38 nursing professionals in three regional hospitals located in the Northeast of Brazil, between March and July of 2016. Content analysis was performed on the data.

Results:

Two categories emerged from the analysis: nursing care provided to people deprived of liberty in the hospital setting and self-evaluation of nursing care provided to PDL.

Final considerations:

The nursing care delivered to people deprived of liberty in the hospital environment is limited to technical procedures, revealing a fragmented work process that falls short of the standards of public policies. We found that structural deficiency, particularly regarding safety in the hospital environment, associated with lack of professional training to deal with this clientele, make nursing care difficult in this context.

Descriptors:
Nursing Care; Hospital Care; Prisoners; Prisons; Public Health

RESUMEN

Objetivos:

Describir la atencion de enfermeria a las personas privadas de libertad (PPL) en el ambiente hospitalario.

Métodos:

Estudio exploratorio, descriptivo, de enfoque cualitativo, en el cual participaron 38 profesionales de enfermeria, realizado entre marzo y julio de 2016 en tres hospitales regionales situados en el Nordeste de Brasil. Se realizo el analisis de contenido de los datos.

Resultados:

En el analisis se encontro dos categorias: Atencion de enfermeria a las personas privadas de libertad en el contexto hospitalario y Autoevaluacion de la atencion de enfermeria a las PPL.

Consideraciones finales:

La atencion de enfermeria a las personasprivadas de libertad en el ambiente hospitalario se restringe a procedimientos tecnicos, lo que demuestra ser un proceso de trabajo fragmentado y por debajo del recomendado por las politicas publicas vigentes. Se identifico que la carencia estructural, sobre todo en lo que se refiere a la seguridad en el ambiente hospitalario, asociada a la falta de capacitacion de los profesionales para lidiar con esta clientela, dificulta la atencion de enfermeria en ese contexto.

Descriptores:
Atencion de Enfermeria; Atencion Hospitalaria; Prisioneros; Prisiones; Salud Publica

INTRODUÇÃO

O cuidado interpessoal é a mais antiga prática da história da humanidade, cuja finalidade é assegurar a continuidade da vida, tendo em vista a garantia das funções vitais humanas. Assim, as práticas de cuidado, a exemplo da oferta de alimentação ou de substâncias com fins curativos para enfrentamento de enfermidades, possuem um caráter cultural, transmitido de geração a geração. No entanto, a partir do século XIX, a prática do cuidado para evitar ou curar as doenças enfrentou um processo de profissionalização, passando a ser considerado um atributo dos profissionais da saúde, com destaque para os da enfermagem(1-2).

A assistência de enfermagem é considerada um dos pilares das práticas de saúde, necessária para promoção, prevenção, tratamento e reabilitação de indivíduos e coletividade(3-4). Portanto, espera-se que ao assistir os usuários, os profissionais de enfermagem fundamentem as práticas em conhecimentos científicos, mas também considerem a humanização como essência da ação técnica e ética nas práticas de saúde(5).

No tocante a assistência à saúde de pessoas privadas de liberdade (PPL), destaca-se as recomendações da Lei de Execução Penal brasileira (LEP)(6), que discorre sobre o direito à saúde das pessoas em privação de liberdade, com garantia de ações curativas e preventivas, compreendendo o atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Além disso, a LEP determina o encaminhamento dos presidiários para estabelecimentos da rede de atenção à saúde, nas situações em que a unidade de saúde prisional não consiga ser resolutiva.

Ainda no âmbito da legislação que versa sobre a assistência a PPL, o Ministério da Justiça em parceria com o Ministério da Saúde instituiu o Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário (PNSSP), através da Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003, visando promover atenção integral à população confinada em unidades prisionais masculinas e femininas, inclusive nas psiquiátricas(7). Em 2014, com a finalidade de ampliar as ações de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) para a população privada de liberdade, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP)(8).

Todavia, ressalta-se que apesar do aparato legal, a assistência à saúde prisional no Brasil enfrenta dificuldades quantitativas, com baixo percentual de unidades prisionais com equipes de saúde implantadas, e qualitativas, principalmente com profissionais não qualificados e rede de atenção fragmentada(9-10).

Além das dificuldades referidas, e da vulnerabilidade social anterior ao aprisionamento, ainda se registra aspectos que potencializam o adoecimento como superlotação, condições sanitárias, alimentação insuficiente e exposição ao estresse e à violência, sendo, não raras vezes, necessário atendimento hospitalar, uma vez que as ações de promoção e proteção à saúde tem demonstrado pouca resolutividade nesse contexto(11-12).

A necessidade de treinar habilidades e competências da equipe de enfermagem para assistirem à PPL, justifica a realização desse estudo. Negar a importância do tema, e varrer para debaixo do tapete análises sobre saúde no sistema prisional, pode significar a aceleração do esgotamento do sistema e agravamento da situação. Portanto, discutir sobre o tema pode ser o início de um processo de transformação que começa na academia e estende seus reflexos para o contexto social.

OBJETIVOS

Descrever a assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade no ambiente hospitalar.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Os dados apresentados constituem parte da dissertação desenvolvida no Programa Associado de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE) e na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), intitulada “Assistência Hospitalar para Apenados: práticas da enfermagem e políticas de saúde”.

Após parecer favorável das Secretarias de Administração Penitenciárias e Instituições Hospitalares envolvidas no estudo, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UEPB e encontra-se em conformidade com a Resolução nº 466/2012(13). Com vistas a resguardar o sigilo dos sujeitos de pesquisa, bem como das instituições visitadas, adotou-se um sistema de identificação por códigos alfanuméricos, sendo os hospitais identificados pelas letras do alfabeto grego (α, β, y), os profissionais pelas “E” - enfermeiro, e “TE” - técnico de enfermagem, seguido do número indicativo da ordem de realização da entrevista.

Tipo de estudo

Caracteriza-se como uma pesquisa descritiva, exploratória, com abordagem qualitativa. Tal abordagem adequa-se quando objetiva-se apreender experiências subjetivas de determinados acontecimentos(14).

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido em três hospitais públicos, nas unidades de clínica médica e cirúrgica, situados em capitais da região Nordeste do Brasil, a saber: Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Tais instituições são referências para assistência de urgência e emergência e destinam-se aos usuários do SUS, incluindo as pessoas privadas de liberdade.

Dentre as três instituições pesquisadas, apenas uma possuía enfermaria específica destinada às PPL, a qual era separada por grades dos demais espaços do hospital. Nas demais instituições visitadas, apenados e os outros pacientes dividiam as mesmas enfermarias, seguindo unicamente o critério do diagnóstico/tratamento médico. Nos três hospitais a equipe de enfermagem cumpria escala mensal nos setores, mas o dimensionamento dos pacientes atendidos por cada profissional técnico em enfermagem era realizado no início do turno de trabalho pelo profissional enfermeiro.

Acrescente-se que as PPL eram acompanhadas por agentes de segurança (policiais militares), os quais permanecem em vigília, fora da enfermaria, durante todo internamento do custodiado, e acompanhavam o profissional de enfermagem durante a prestação dos cuidados. Ademais, alguns apenados eram contidos no leito, por algemas, segundo a justificativa do alto grau de periculosidade deles.

Fonte dos dados

Os participantes da pesquisa foram componentes da equipe de enfermagem, que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: serem enfermeiros ou técnicos de enfermagem que trabalhavam nos setores de Clínica Médica e Clínica Cirúrgica dos referidos hospitais e que prestavam assistência às PPL há no mínimo seis meses. Foram excluídos os profissionais que estavam de férias ou licença médica no período da coleta. Ao final, considerando a saturação teórica das falas(15), participaram do estudo 38 profissionais, sendo 17 enfermeiros e 21 técnicos de enfermagem.

Coleta dos dados

A produção dos dados ocorreu no período de março a julho de 2016, a partir de entrevistas semiestruturadas, audiogravadas, realizadas em salas privativas, nas respectivas instituições, tendo como base as seguintes questões norteadoras: Como a assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade ocorre nesta instituição? Como você avalia o atendimento (assistência) dos profissionais de enfermagem?

Os sujeitos da pesquisa eram identificados in loco, os quais eram convidados a participar da pesquisa após explanação acerca dos objetivos da mesma. Os que cumpriam os critérios de inclusão previamente estabelecidos foram entrevistados nos postos de enfermagem de cada instituição cenário desta pesquisa, em horário conveniente para os mesmos. Acrescente-se que as entrevistas foram audiogravadas e transcritas na íntegra, imediatamente após a realização das mesmas, a fim de não perder informações relevantes para análise dos dados.

Análise dos dados

A análise dos dados ocorreu concomitante à coleta, adotando a técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin(16), e, conforme preconizado, executando as três fases: a pré-análise, em que se buscou uma primeira impressão dos dados coletados, que por sua vez subdivide-se em quatro etapas, a saber: a leitura flutuante, a escolha dos documentos, as hipóteses, os objetivos e a elaboração de indicadores; a fase exploratória, em que o material foi codificado em categorias por meio de recortes dos registros; e a terceira e última fase, em que os dados foram tratados por meio de avaliação crítica e reflexiva.

RESULTADOS

Da análise das falas emergiram as seguintes categorias: assistência de enfermagem prestada às PPL no contexto hospitalar e autoavaliação da assistência de enfermagem prestada às PPL, que serão descritas a seguir, com os conceitos emergentes, através das falas dos participantes.

Categoria I - Assistência de enfermagem prestada às pessoas privadas de liberdade no contexto hospitalar

O cuidado prestado pela equipe de enfermagem a pessoas privadas de liberdade no âmbito hospitalar limita-se a sanar as necessidades básicas desta clientela, a saber: banho, curativos, alimentação e medicalização, para garantir o pronto restabelecimento, conforme demonstram as falas que seguem:

Bem, a gente aqui divide o trabalho. O técnico faz medicação, os cuidados gerais e banho no leito. O enfermeiro fica responsável por sonda, medicação por bomba, coisas complexas. Cada um trabalha no que pode para curar o mais rápido. (α TE3)

As práticas de cuidado são as mesmas para todos os pacientes, mas com os custodiados (assim que aqui chamamos eles) o foco está na administração de medicamentos, curativos e na higiene íntima como ações curativas dos pacientes. (y TE7)

Banho no leito, administração de medicamento, passagem de sonda e curativo. Tudo que for preciso ser feito pela enfermagem, prescrito pelo médico a gente faz. (E2)

Categoria II - Autoavaliação da assistência de enfermagem prestada a pessoas privadas de liberdade

Esta categoria contemplou a avaliação geral da equipe de enfermagem sobre aspectos relacionados à assistência ofertada às pessoas privadas de liberdade hospitalizadas.

Eu acho um pouco deficiente. Falta um pouco de preparo para ter relacionamento, diálogo com o paciente, precisa dessa orientação. O paciente merece cuidados como outro qualquer independente do que ele tenha feito. Mas a comunicação terapêutica não existe. Com eles existe medo. De um lado a gente tem pena. De outro medo, raiva. Uma mistura de sentimentos. (β E4)

A avaliação sobre a assistência é positiva. Fazemos o que necessitam. Mas nunca tivemos treinamento para esta parte emocional, comportamental. (β E5)

A avaliação só seria positiva se ambos, pacientes e profissionais, estivessem bem ao final. Os pacientes até ficam, pois recebem o atendimento que o corpo necessita. Mas os profissionais quando descobrem a escala para a enfermaria de custodiados ficam com medo, é sofrimento. Eles sofrem de dores do corpo, os profissionais sofrem com medo. Fazer procedimento com perfurocortante, equipo, escalpe, rodeado por eles, é muito desafiador. Por isso a minha avaliação é negativa. A gente cuida deles, mas quem cuida da gente? Tem aquele medo, aquela pressão psicológica, eu não entro lá sozinha, sempre chamo uma colega. (y TE6)

A distinção na assistência prestada entre as PPL e os demais pacientes, emerge em algumas falas e sinaliza que a periculosidade do paciente afeta diretamente as práticas desenvolvidas pela equipe de enfermagem.

O tratamento é diferenciado porque a gente tem certo receio, porque querendo ou não eles passam um cuidado que a gente tem que ter a mais na questão da vigilância com eles. São pacientes custodiados! São pacientes presos! São pacientes às vezes revoltados, saíram do presídio. (α TE1)

Existe diferença sim. Se disser que não existe está mentindo. No tratamento, na forma, se eu tiver um remédio, só aquele para escolher eu vou dar a outra pessoa. Não a ele! Ele vai ser o último a ser beneficiado. Porque muitos estão aqui após confronto com policiais ou bandidos. (β TE2)

Rapaz olha sinceramente às vezes eu sinto diferença. Dependendo eu procuro não saber o que ele fez, mas a gente acaba sabendo. Então, um tempo desses chegou aqui um estuprador. Estuprou uma criança de cinco anos. Estuprou e matou! Então, assim a gente olha para uma pessoa daquela eu tenho uma filha e a gente se esforça para cuidar. Faz o básico mesmo, técnico, mecânico, para nem ele nem a família reclamar. (β E1)

De uma forma geral a gente tem certo cuidado, certa precaução, em relação a materiais quando a gente vai fazer algum procedimento. Tenta deixar afastado tipo, bisturi se for algum tipo de procedimento invasivo, afinal, ele pode usar isso contra a gente. Essa preocupação não tem em outras enfermarias. Quando estou na enfermaria dos custodiados, tomo como um castigo. O plantão é um inferno. (β E3)

Alguns entrevistados afirmam organizar e executar a assistência sem distinção, independente de o sujeito ter transgredido leis, como nas falas que seguem:

A gente tenta tratar eles da mesma forma. Todos os cuidados que são feitos com os demais pacientes são feitos com eles também, até porque tem os direitos humanos, não é? Mesmo tendo medo, tendo aquela pressão psicológica porque eles ficam encarando a gente. (y TE6)

Trato todos igual porque para mim todos são pacientes. Não tem aquele o custodiado ou o pai de família, não. Todos para mim são iguais. (β TE1)

É o mesmo cuidado como se fosse com os outros porque independente do que ele fez ele é um ser humano igual a qualquer um. E a gente deve respeitar porque ele está aqui para ser cuidado e não para ser maltratado, julgado ou absolvido. (β TE5)

Os entrevistados sinalizaram a falta de estrutura hospitalar, com ênfase para segurança dos profissionais como um fator que interfere na assistência ofertada:

Olha se não tiver nenhum apenado desorientado que comprometa que vá oferecer na verdade algum risco à assistência ela é adequada. Agora se estiver lá dentro da custódia como tem hoje a superlotação de seis pacientes onde só comportam três, AÍ é complicado. Tememos pela segurança mesmo. É igual a trabalhar em presídio superlotado. (α E8)

A gente tem um pouco de problema. Tem uns policiais que tem dia que são ótimos que a gente quando vai entrar lá eles entram junto com a gente. Às vezes o pessoal entra e eles ficam lá do lado de fora e não entram. Já aconteceu também de as técnicas entrarem no horário da medicação e eles pegarem e fecharem a grade. Elas ficaram lá trancadas com eles e eles do lado de fora, isso não é certo. Uma delas nunca mais voltou para o hospital. (α E4)

DISCUSSÃO

Os resultados desta pesquisa permitiram identificar aspectos acerca da assistência de enfermagem prestada às PPL, que se limita a procedimentos técnicos, demonstrando um processo-de-trabalho fragmentado e aquém do preconizado pelas políticas públicas vigentes.

Sabe-se que o paradigma flexneriano, influente e ainda presente na área da saúde, caracteriza-se pelo olhar tecnicista, biologista, focado em ações curativistas por parte da equipe de enfermagem, em detrimento de uma prática holística e humanizada(17-19). Nesse contexto, a prática assistencial desenvolvida nos hospitais demonstra que os profissionais de enfermagem têm exercido suas práticas de cuidar somente em busca da cura, com a atuação restrita a realização de procedimentos, trabalho mecanizado, fragmentado, ausência de comunicação com paciente, avaliação clínica inexistente e evoluções vagas.

A realidade identificada nesta pesquisa contraria não apenas as recomendações da PNAISP quanto à integralidade da assistência às PPL, mas aquilo preconizado para uma boa assistência de enfermagem, ou seja, intersecção entre habilidades sociais, técnicas, gerenciais e científicas(8,18-19).

Os profissionais de enfermagem devem pautar suas práticas de acordo com padrões de qualidade e princípios éticos, compreendendo que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra na oferta do ato técnico, mas faz-se necessário o comprometimento com a qualidade de vida do indivíduo assistido(20).

Conforme previsto na PNAISP, o cuidado deve ser integral e promover atenção qualificada e humanizada(7). Para tal atuação, é coerente que este profissional deva agir junto ao paciente privado de liberdade pautando suas ações no compromisso, equidade, resolutividade, dignidade, competência e responsabilidade.

Outro aspecto relevante para qualidade da assistência de enfermagem às PPL versa sobre a disponibilidade de recursos humanos capacitados e a efetivação da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) no contexto hospitalar(21).

É reconhecida a complexidade da prática do enfermeiro, do cuidado que permeia essa prática e do fazer como ação diária na assistência a sujeitos privados de liberdade no ambiente hospitalar. Soma-se à complexidade o desconforto referido pelos profissionais ao cuidar dos sujeitos e o reconhecimento da insuficiência no quantitativo de profissionais para garantir a assistência de enfermagem. Estes aspectos demonstram a necessidade de debate profícuo sobre a assistência hospitalar a sujeitos privados de liberdade e o papel do enfermeiro.

As falas revelam serviços com assistência comprometida, ausência de qualificação específica para o cuidado de sujeitos privados de liberdade, deficiência nos cursos de formação, com currículos que não treinam habilidades e competências para assistirem PPL no ambiente hospitalar, bem como falta de iniciativas e atualizações das instituições hospitalares acerca das necessidades que se avolumam no processo de trabalho.

Os profissionais de enfermagem que trabalham na assistência direta, mesmo que eventual, reconhecem dificuldades na tarefa de cuidar dos custodiados como sendo razão para desencadeamento de sentimento de culpa, tristeza, ansiedade, raiva e impotência, semelhante aos experienciados por quem assiste paciente no processo da terminalidade da vida(22).

Assim, depreende-se que os profissionais de enfermagem não se sentem preparados, do ponto de vista emocional e comportamental, para cuidar integralmente deste grupo de sujeitos da população. Constata-se que além do estresse próprio do processo de trabalho da enfermagem, o profissional precisa saber lidar com o estresse emocional que está relacionado à condição de aprisionamento do sujeito. Estes enfrentamentos podem comprometer a qualidade dos cuidados e a estrutura psicológica dos trabalhadores(22).

No cenário estudado, o não estabelecimento das relações interpessoais repercute no cuidado integral, na humanização e na preservação de questões éticas que permeiam a prática profissional(23). De acordo com a literatura, a comunicação é a base do relacionamento terapêutico. Todavia, nas instituições hospitalares pesquisadas o medo constante na relação com PPL e familiares, a convivência iminente com enfrentamentos entre eles e os agentes de segurança e o receio de causar insatisfação diante de uma solicitação não atendida, fazem com que os profissionais se esquivem de estabelecer relacionamento.

Os sujeitos dessa pesquisa avaliam suas práticas de forma negativa, em função da completa ausência de vínculo, do descumprimento do sigilo, já que os profissionais só realizam atendimento na presença de agente de segurança, e da naturalização da contenção ao leito. Tal como os profissionais do estudo de Kuhn, Lazzari e Jung(24), alguns membros da equipe de enfermagem parecem adotar a mecanização, o distanciamento, a racionalização e despersonalização do cuidado, destituindo os sujeitos de qualquer outro significado.

Por esta razão, deve-se estimular o treino de habilidades e competências para a assistência das PPL no ambiente hospitalar, a fim de que o estigma em relação aos que transgridam a lei penal, as regras de segurança, o despreparo psicológico, o medo e o quantitativo de profissionais não comprometam a assistência, a partir da modificação do processo de trabalho e não limitação das ações de saúde.

Dessa forma, evidencia-se o importante papel da educação permanente na mobilização das potencialidades dos trabalhadores de enfermagem, pois, ao resgatar uma concepção voltada para o desenvolvimento desses profissionais, permite uma melhora permanente da qualidade do cuidado a saúde e a constituição de práticas técnicas críticas, éticas e humanísticas(25).

A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, instituída pela portaria GM/MS 198/04, objetivou constituir uma rede de ensino-aprendizagem no exercício de trabalho no SUS para a formação e desenvolvimento dos trabalhadores, pautada nas necessidades de saúde dos usuários/população, ao passo que enfatizou a interdisciplinaridade da equipe de saúde, focalizou a prática como fonte do conhecimento e colocou o profissional para atuar ativamente no processo educativo(25).

Pode-se verificar que as ações prestadas pela equipe de enfermagem mudam de acordo com os usuários, havendo relação entre o tipo de crime cometido, o estabelecimento de relação de empatia pelo sujeito, e consequentemente repercutindo na qualidade da assistência. Em um estudo sobre o trabalho em saúde com pacientes apenados, refere-se que a condição social de infrator se faz presente a todo o momento, tornando conflituosa a relação, pois a condição de doente é inegável, mas momentânea; já a transgressão cometida pode ser recidiva na vida pregressa, fato que desperta nos profissionais um sentimento antagônico, entre o paciente e o “criminoso”(26).

Neste estudo, apesar de várias dificuldades em estabelecer uma interação positiva, foi possível identificar algumas falas dos entrevistados que entendem a situação individual de adoecimento do paciente preso como a de qualquer ser humano, abstraindo no momento do cuidado a condição de custodiado.

Toda a assistência e atitudes em exercício do profissional de enfermagem devem ter como meta a preservação do respeito, da valorização da vida, da qualidade do viver, da dignidade humana enfim; e isso tudo independentemente de a quem esteja sendo prestada a assistência de enfermagem(27).

Ademais, as PPL apenas não conservam seu direito de ir e vir, mas mantem todos os demais direitos fundamentais protegidos e garantidos pelo Estado, incluindo a assistência à saúde, a partir das diretrizes que regem o PNAISP, consoante ao SUS, a saber: integralidade, intersetorialidade, descentralização, hierarquização e humanização(7).

Contudo, verifica-se que alguns profissionais de enfermagem dos serviços pesquisados enfrentam algumas dificuldades na realização de suas atividades assistenciais. De acordo com as entrevistas, percebe-se a preocupação com a integridade física e segurança dos responsáveis pela assistência.

Evidencia-se que, para os profissionais entrevistados, a falta de parceria e sintonia com os agentes de segurança é fator complicador para execução da assistência. Salienta-se inclusive que a maior interação favoreceria a sensação de proteção e, por conseguinte, beneficiaria os cuidados aos pacientes em reclusão, no ambiente hospitalar.

A assistência fica, portanto, condicionada à presença ostensiva do serviço de segurança, sob a égide de que a segurança está em primeiro lugar e, posteriormente, quaisquer outras necessidades das PPL, inclusive assistência à saúde(28).

Assim sendo, entende-se que a equipe de enfermagem ao cuidar dos PPL deve pautar a prática nas recomendações da biossegurança, porém deve também manter conduta ética e garantir o direito à saúde e à dignidade humana, respeitando os princípios que regem o seu exercício profissional. Afinal, o cuidar é essencial para a vida humana de profissionais de saúde e de usuários que necessitam de assistência.

Isso demonstra a urgente necessidade de estabelecer momentos de avaliação da assistência prestada, a fim de alcançar formas de ação coletiva, na perspectiva do olhar e agir interdisciplinar, necessários para a compreensão da complexidade do cuidar em saúde.

Limitações do estudo

Considera-se como limitações a restrição da coleta de dados às unidades de clínica médica e cirúrgica, não sendo possível generalizar os resultados.

Contribuições para a área de enfermagem, saúde ou política pública

Espera-se que os resultados deste estudo, ao revelarem a avaliação dos profissionais de enfermagem sobre suas práticas, subsidiem a implementação de ações de educação permanente e, por conseguinte, mudanças no processo de trabalho e qualificação da assistência. Por fim, sugere-se realização de novos estudos, inclusive ampliando o escopo e incluindo a identificação de barreiras organizacionais e legais que interferem nas ações assistenciais ofertadas a PPL.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cuidado de enfermagem prestado às PPL no ambiente hospitalar limita-se a procedimentos técnicos, demonstrando um processo-de-trabalho fragmentado e aquém do preconizado pelas políticas públicas vigentes. Identificou-se que a carência estrutural, sobretudo no tocante à segurança no ambiente hospitalar, associada à falta de capacitação dos profissionais para lidar com esta clientela, dificultam a assistência de enfermagem nesse contexto.

Revela-se a necessidade de incluir questões referentes à saúde prisional nos componentes curriculares e nas atividades de estágio de discentes dos cursos técnico e superior de enfermagem, com vistas a garantir treino de habilidades e competências para uma abordagem profissional integral e humana a esta clientela. Ademais, sinaliza-se para a importância de ações de educação permanente para os profissionais de enfermagem acerca da assistência à saúde de sujeitos privados de liberdade.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Aparecida Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2018
  • Aceito
    03 Maio 2019