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» Volume 73

Número suppl.5

http://dx.doi.org/

Indícios de padrões de conhecimento de enfermagem comunicados pela imprensa brasileira antes do modelo nightingaleano

RESUMO

Objetivo:

identificar indícios de padrões de conhecimento da enfermagem difundidos pela imprensa brasileira antes da implantação do modelo nightigaleano no Brasil, e categorizar temas das matérias jornalísticas em função dos padrões de conhecimento de Carper e de White.

Métodos:

análise de conteúdo categorial de matérias alusivas a Florence Nightingale, publicadas no Brasil entre os anos de 1850 e 1919, coletados na Hemeroteca Digital. Quatro analistas identificaram indícios temáticos das matérias, realizando a classificação em padrões de conhecimento.

Resultados:

verificou-se a predominância de indícios do padrão sociopolítico seguido do empírico. Nas análises por década, os padrões ético e estético demonstraram predominância entre 1860 e 1870, respectivamente.

Conclusão:

a classificação por padrões de conhecimento de enfermagem de White foi útil no entendimento de temas precursores do conhecimento profissional/disciplinar, que se difundiram no Brasil, ligados ao caráter de Nightingale, além das repercussões de suas ações e a sua visão sócio-política ampliada.

Descritores:
Conhecimento; Comunicação; Enfermagem; Filosofia; História

ABSTRACT

Objective:

to identify evidence of nursing patterns of knowing disseminated by the Brazilian press before the implementation of Florence Nightingale’s model in Brazil and categorize topics of journalistic articles according to Carper’s and White’s patterns of knowing.

Methods:

categorical content analysis of materials related to Florence Nightingale, published in Brazil between 1850 and 1919, collected at Hemeroteca Digital. Four analysts identified themes of journalistic article, performing classification in patterns of knowing.

Results:

there was a predominance of evidence of the sociopolitical pattern followed by the empirical pattern. In the analyses per decade, ethical and aesthetic patterns showed predominance between 1860 and 1870, respectively.

Conclusion:

White’s classification by nursing patterns of knowing was useful in understanding precursor themes of professional/disciplinary knowledge that spread in Brazil, linked to Nightingale’s character, in addition to the repercussions of her actions and her expanded sociopolitical perspective.

Descriptors:
Knowledge; Communication; Nursing; Philosophy; History

RESUMEN

Objetivo:

identificar evidencia de los estándares de conocimiento de enfermería difundidos por la prensa brasileña antes de la implementación del modelo nocturno en Brasil y categorizar temas en artículos de noticias de acuerdo com los estándares de conocimiento de Carper y White.

Métodos:

elanálisisdelcontenido categórico de artículos alusivos a Florence Nightingale, publicados en Brasil entre 1850 y 1919, recopilados enla Hemeroteca Digital. Cuatro analistas identificaron evidencia temática de los artículos, classificando los de acuerdoconlosestándares de conocimiento.

Resultados:

predominaba la evidencia del patrón sociopolítico seguido del empírico. Em las análisis por década, los estándares éticos y estéticos mostraron predominio entre 1860 y 1870, respectivamente.

Conclusión:

la clasificación de White según los estándares de conocimiento de enfermeira fue útil para compreender los temas precursores del conocimiento professional / disciplinario, que se extendió en Brasil, vinculado al carácter de Nightingale, además de las repercusiones de sus acciones y suvisión sociopolítica más amplia.

Descriptores:
Conocimiento; Comunicación; Enfermería; Filosofía; Historia

INTRODUÇÃO

Na enfermagem moderna ocidental, Florence Nightingale (1820-1910) é reconhecida como a primeira pensadora de influência que delineou valores e crenças para a profissão(1). Pode-se apontar suas principais contribuições foram identificar o papel das enfermeiras, diferenciando-o do exercido pelos médicos, estabelecer um modelo de treinamento e produzir escritos de natureza teorizante a partir de ações na prática. Sua resposta à questão “o que é e o que não é enfermagem?” ofereceu elementos filosóficos dirigidos a valores orientados do que deva ser a enfermagem e, por consequência, o conhecimento da disciplina prática(2). Em seus escritos, estabeleceu uma estrutura tácita do que viria a ser futuramente um conhecimento multidimensional da enfermagem, onde ela enfatizou o uso da experimentação, aspecto típico do empiricismo britânico, valorizou a estatística, prestigiando a observação e seu registro acurado e postulou afirmativas sobre o processo de ação da natureza na saúde das pessoas e suas relações com a manipulação do ambiente.

Nightingale, porém, reconhecendo que exclusivamente traços racionalistas não seriam suficientes para constituir o que deveria ser a formação da enfermeira, incorporou ao processo de formação da enfermeira, uma certa disposição ética e moral e observância de características pessoais particulares,além de uma preocupação sócio política sobre o contexto no qual uma nascente enfermagem moderna se inseria e a habilidade requerida para atuar de forma artística(3). Sua família, com forte devoção unitariana, caminhava com os ideais da religião: respeito à dignidade humana; uso da razão intelectual para iluminar a consciência; agir orientado por convicções religiosas para promover a vida; adesão aos avanços científicos; e perseguição da justiça social(1). Tais pressupostos interfeririam na visão multifacetadada realidade e do conhecimento, possivelmente, decorrente das raízes de sua formação, sistema de crenças e valores e trajetória pessoal no convívio com o sofrimento humano.

Em seu nascimento, a enfermagem nightingaleana afasta-se do aspecto basilar do positivismo comtiano da metade do século XIX, de valoração de uma ciência objetiva e de neutralidade axiológica, apontando para um conhecimento gerado por lógica indutiva alicerçada nas experiências da prática profissional a ser ensinada sistemática e formalmente em escolas para enfermeiras. Consequentemente, surge um conhecimento carregado de valores oriundos da prática das enfermeiras e de modelos presumidos e experimentados de como deveriam ser e agir as mulheres que seriam enfermeiras.

Com maior ou menor formalismo, o conhecimento de enfermagem tem sido submetido a descrições e classificações das quais as mais difundidas são os padrões de conhecimento propostos, em 1978, por Carper, e posteriormente atualizados por White(4-5). Os próprios escritos de Nightingale foram submetidos à análise para se verificar se os padrões de conhecimento teriam validade como um sistema de descrição e classificação do material(6). Desta análise, foi verificado que as obras da autora apresentavam todos os cinco padrões: empírico, estético, ético, pessoal, sociopolítico. Posteriormente, essas obras permitiram a proposição de um novo padrão denominado de “desconhecimento”(6). Portanto, se verifica que já estavam presentes indícios dos padrões de conhecimento de enfermagem nas obras de Florence antes do sistema categorial de Carper ser proposto(4).

Contudo, ainda não foram investigados quais indícios dos padrões de conhecimento de enfermagem também foram comunicados fora das obras de Nightingale, mais especificamente pela imprensa em matérias jornalísticas, durante o período temporal em que a sistematização de seu conhecimento era iniciada. Essa questão é particularmente interessante para estudar as condições de base da circulação da informação que comunica o conhecimento de enfermagem para a sociedade, por canais não especializados. Lança-se a perspectiva da comunicação da profissão nascente antes de que o próprio modelo profissional nightingaleano alcançasse a maturidade, distinção e difusão. No Brasil, um modelo de formação de enfermeiras desse tipo só foi formalizado a partir da década de 1920(7). Anteriormente, a formação de enfermeiras e enfermeiros era desenvolvida por médicos, sem organização, controle formal ou seleção e ascensão por mérito(8).

Foram questões centrais: quais indícios de padrões de conhecimento de enfermagem associadas às matérias sobre Florence Nightingale circularam pelos periódicos brasileiros antes da implantação do modelo nightingaliano no país? E, quais temáticas das matérias jornalísticas da época expressavam tais indícios de padrões de conhecimento de enfermagem?

OBJETIVO

Identificar indícios de padrões de conhecimento da enfermagem difundidos pela imprensa brasileira antes da implantação do modelo nightigaleano no Brasil e categorizar temas das matérias jornalísticas em função dos padrões de conhecimento de Carper e de White.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo empregou o processo de análise de conteúdo textual de matérias jornalísticas publicadas na segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX, estando dispensados os procedimentos éticos de estudos com seres humanos.

Referencial teórico-metodológico

Formaram a base categórica referencial os modelos históricos da formação de enfermagem e os padrões de conhecimento da enfermagem propostos por Carper(4) e atualizados por White(5). No modelo histórico, foi utilizada a concepção da implantação de um modelo nightingaleano de formação, específico para enfermeiras brasileiras no Brasil, a partir da década de 1920, com a reforma sanitária. No modelo epistemológico de categorização do conhecimento de enfermagem, foram usados os cinco padrões de conhecimento, segundo a classificação de Carper(4), atualizada por White(5): empírico, ético, pessoal, estético e sociopolítico(4-5,9).

O padrão empírico é referente ao conhecimento sistematicamente organizado, empírico, factual, descritivo e aos entendimentos. O ético,ligado ao componente moral, é focado nas questões da obrigação e do que deve ser feito, incorporando valores, códigos e padrões que orientam o moralmente correto, senso de ser responsável pelo mundo, focando-se no bem social e moral, advogando de forma existencial e valorizando a ideia moral do cuidado. O pessoal é relacionado ao “self”, reflexões sobre as respostas pessoais à vida e ao mundo, autoconhecimento, realização de potencialidades e realidades do ser, capacidade de usar a arte, poesia, literatura para melhor entender a pessoa. O estético é referente à arte da enfermagem, que é visível pela ação, empatia, piedade, simpatia, consolação e misericórdia, engajamento interpessoal, percepção do todo de uma situação. O sociopolítico é ligado ao contexto social e político das pessoas e da profissão, ao entendimento da sociedade sobre a enfermagem, ao entendimento da enfermagem sobre a sociedade e suas políticas, identidade cultural, em questões históricas da conexão com sua terra e heranças(4-5).

Tipo de estudo

Estudo do tipo misto de análise de conteúdo. O processo categorial dedutivo foi usado para classificar segmentos de mensagens como indícios de padrões de conhecimento em matérias jornalísticas de enfermagem. Também foi aplicada a análise de conteúdo indutiva para categorizar temas emergentes das mensagens(10). Pelas particularidades do estudo em combinar os processos dedutivos (quantitativos) e indutivos (qualitativos), a redação foi orientada genericamente pelo Equator “Guidelines for conducting and reporting mixed research in the fiel do fcounseling and beyond(11). Entretanto, adaptações foram indispensáveis considerando as particularidades dos processos de análise de conteúdo.

Procedimentos metodológicos de coleta e organização dos dados

A seleção da ferramenta de busca foi pela “busca avançada na Hemeroteca” da Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil. O portal de periódicos foi escolhido por sua reputação, acesso universal e aberto e sua abrangência histórica de inclusão de periódicos desde 1808. A ferramenta de busca avançada foi escolhida por recortara busca por décadas.

Todos os periódicos disponíveis entre as décadas de 1850 a 1910 foram selecionados para busca e inclusão. O intervalo temporal escolhido foi aquele que cobriu dois eventos de notoriedade na vida de Florence Nightingale como: sua atuação no cuidado aos feridos na guerra da Criméia na década de 1850 e sua morte em 13 de agosto de 1910. No procedimento de busca, foram utilizados como palavras-chave o termo-raiz “nightingal” e a palavra “Nightingale”, considerando que o sistema faz distinção entre os termos. O filtro de década foi acionado para cada procedimento de busca.

Foi utilizada planilha do GoogleSheets® para construção e compartilhamento do banco de dados entre os codificadores.Nela,foi incorporada um número para a matéria jornalística com menção a Florence Nightingale, publicada no período de 1850 a 1919 em periódicos de circulação no Brasil, foram também incorporados o ano de publicação, o nome do periódico, a edição, o nome da matéria e o conteúdo da matéria. A coleta de dados e a organização dos dados foram realizadas em outubro de 2018.

Foram incluídos todos os periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, em uma distribuição por décadas como se segue: 431 publicações de 1850-1859; 599 publicações de 1860-1869; 945 publicações de 1870-1879; 1495 publicações de 1880-1889; 1279 publicações de 1890-1899; 773 publicações de 1900-1909; e 736 publicações de 1910-1919.

Análise e codificação dos dados

A análise orientou-se para identificar por inferência dedutiva indícios de padrões de conhecimento da enfermagem nas matérias. No nível primário de análise, todas as matérias dos periódicos foram lidas em sua completude por dois pesquisadores (um enfermeiro e uma historiadora), que fizeram a inserção dos dados na planilha.No nível secundário de análise, a codificação categórica do conteúdo das matérias jornalísticas pelos padrões de conhecimento foi realizada por quatro pesquisadores, sendo três enfermeiros e uma historiadora. Quando o analista verificava a presença de texto (indício) de mais de uma categoria na mesma matéria, os padrões identificados eram ordenados em ordem decrescente de preponderância na semântica da mensagem, a partir da opinião do analista.

A análise indutiva dos temas considerou os assuntos e temas emergentes dos textos em unidades de significado. A posterior classificação dos conteúdos por padrões de conhecimento foi realizada de forma independente pelos analistas para, em seguida, verificar-se as discrepâncias classificatórias. De modo a ampliar a confiabilidade do processo analítico, aplicou-se o coeficiente Kappa para mensurar a concordância entre os codificadores e decidir pela realização de nova rodada de classificação, se necessário. Considerando a complexidade de classificação de construtos teóricos, definiu-se que uma nova rodada de classificação seria necessária quando o valor do Kappa geral dos codificadores indicasse uma concordância abaixo do nível de moderado (0.41-0.60) em condição de significância estatística (p<0,05)(12). O valor do Kappa foi calculado com o software Prisma 8®.

RESULTADOS

Tendências dos padrões de conhecimento ao longo do tempo

Em uma primeira rodada de classificação dos elementos de conteúdos compatíveis com os padrões de conhecimento, o valor do Kappa geral foi de 0,455 (0,391-0,519) para um intervalo de confiança de 95%, sendo considerado moderado, contudo, sem obter a significância estatística. Pelo critério metodológico, uma nova rodada de classificação pelos analistas foi realizada. Na nova classificação, o valor do Kappa geral aumentou para 0,522 (0,457-0,586), moderado, e valor p<0,05. Assim, a classificação adotada no estudo foi a estabelecida na segunda rodada.

Foram identificadas 71 matérias jornalísticas em 45 periódicos diferentes de 12 estados do país e de dois países estrangeiros que circulavam no Brasil na época. Os achados evidenciaram um comportamento homogêneo no número de matérias, oscilando entre 6 e 8 até 1900, e entre 1910 e 1919, ampliando-se para 28 matérias como pode ser verificado na Figura 1.

Figura 1
Gráfico de distribuição das 71 matérias nos periódicos mencionando Nightingale, em função das décadas

Ainda que uma dada matéria pudesse conter segmentos de textos que indicassem a existência simultânea dos cinco padrões de conhecimento, comumente verificou-se até dois padrões distintos por matéria com uma média de 1,45 (DP=0,15) padrões/matéria. Os valores entre as médias dos quatros analistas não diferiram de forma substancial; sendo elas: Codificador A=1,51padrões/matéria; Codificador B=1,73padrões/matéria; Codificador C=1,39padrões/matéria; Codificador D =1,31 padrões/matéria.

Em todas as matérias, foram identificados segmentos textuais compatíveis com, pelo menos, um padrão de conhecimento da enfermagem. No total, foram codificados 422 segmentos textuais pelos quatro analistas, e foi atribuída a esses analistas uma categorização em função do padrão de conhecimento predominante. Verificou-se a predominância do padrão sociopolítico, que representou a maioria dos segmentos textuais classificados, seguido pelo empírico, estético, ético e pessoal, respectivamente. A distribuição percentual dessa classificação é apresentada na Figura 2.

Figura 2
Distribuição percentual de expressões de padrões do conhecimento identificados nos periódicos mencionando Nightingale

Também foi investigada a tendência por predominância de padrões ao longo do tempo. Para isso, foi elaborado um índice da relação do número total de classificações de um dado padrão na década pelo número de matérias identificadas na mesma década. A Figura 3 apresenta as curvas para os diferentes padrões.

Figura 3
Índice do número de classificações do padrão de conhecimento pelo número de matérias nos periódicos tratando de Nightingale na década (1850 a 1919)

O padrão empírico foi o que demonstrou maior homogeneidade na curva na maioria das décadas do intervalo temporal, seguido do pessoal. Os padrões apiculados foram acentuados para os padrões sociopolítico, ético e estético.

Categorias de temas contidas nas matérias jornalísticas

O processo de análise do conteúdo identificou temas e assuntos, que foram alinhados aos padrões de conhecimento. A codificação por temas e assuntos é apresentada no Quadro 1.

Quadro 1
Temas e assuntos tratados nas matérias nos periódicos distribuídos em função dos padrões de conhecimento

DISCUSSÃO

Os dados desta pesquisa indicam que a imprensa brasileira noticiou a atuação de Florence Nightingale durante o período em que ela esteve na Guerra da Criméia. As publicações biográficas e de estudos sobre seu legado não deixam dúvidas de que sua notoriedade nacional e internacional é derivada do período de 20 meses em que esteve envolvida no cuidado aos soldados ingleses neste confronto, que durou de1854 a 1856(13).

A predominância de indícios do padrão de conhecimento sociopolítico, fortemente associados a ações tidas como de heroísmo no cuidado a soldados feridos e enfermos, circulou pela impressa do Brasil, repetindo o padrão de comunicação inglês. Projetou um modelo de caráter, senso de dever, disponibilidade e coragem, que marcava um padrão social de alta reputação para as mulheres naquela época. Após chefiar juntamente com suas “nurses” o Hospital de Campanha durante a Guerra da Crimeia (1853 a 1856), Nightingale desempenhou ações de cuidados com os feridos de guerra, participou da organização de hospitais e da defesa da necessidade de um tratamento higiênico, que causaram impacto na Europa e, aos poucos, foi difundido para outros países, o que, em última instância, levou à sua notoriedade internacional(14). Isso lhe gerou visibilidade e repercussões que se perpetuaram. O reconhecimento por ter ido à guerra lhe retornou em forma de homenagens e honrarias, discursos e prestígio na sociedade inglesa, o que foi apresentado para a sociedade brasileira como um padrão a ser seguido por mulheres do país no engajamento do cuidado a feridos e doentes.

Na década de 1860 o pico de matérias com indícios do padrão ético do conhecimento da enfermagem abordava uma elevada moral cristã de Florence ao agir em socorro e em benefício dos que estavam sobre seus cuidados, ainda que sem descrever suas contribuições na construção de normas e condutas éticas para as enfermeiras sob sua liderança. O padrão de conhecimento ético nas obras de Nightingale envolvia não apenas a dimensão de “fazer a coisa certa”, associada à sua missão de socorro ligada à sua mística vocacional, mas as decisões diárias sobre o modo de conduzir o cuidado, de forma responsável, focada no cliente e com tomada de decisões precisas em benefício dos pacientes(15). Entretanto, a imprensa brasileira estava preocupada em destacar o traço moralda sociedade para enfatizar a necessidade de normas e um conjunto de condutas para a prática das enfermeiras não nightingaleanas que atuavam no país. O conteúdo das matérias analisadas permite se inferir uma relação do padrão ético comunicado com o período monárquico e com predominância da influência da Igreja Católica Romana, que tendia a associar o cuidado a questões de caridade cristã e necessidade de valores morais relacionados.

Os segmentos textuais com indícios do padrão estético de conhecimento alcançaram um pico na década de 1870. De um modo geral, o padrão estético relaciona-se principalmente à empatia, a capacidade de participar ou experimentar o sentimento do outro(6). Nas mensagens, os temas destacavam caridade ou filantropia tanto associando diretamente com Nightingale como com as irmãs de caridade ou outras enfermeiras da história. Por outro lado, esse padrão quase sempre foi acompanhado do padrão sociopolítico em temas sobre solidariedade, mais necessitados e desassistidos, e no inconformismo de Nightingale com injustiças e iniquidades sociais. Duas matérias são ilustrativas desta última característica: um de 1876, que menciona o engajamento político-social de Nightingale em defesa humanitária de prostitutas junto a Ladies National Association for the Repeal of the Contagious Diseases Acts, e um de 1878, apontando as análises de Nightingale de documentos oficiais e de sua experiência indicando que os ingleses não se importavam com o povo da Índia na época da colônia inglesa. Assim, pode-se inferir que os padrões de conhecimento permitem construir uma classificação categorial distinta, entretanto, é incorreto entendê-lo como fragmentado em classes excludentes e independentes.

O sistema categórico demonstrou-se útil para se identificar a complexidade e diversidade do conhecimento de enfermagem(6). Diante disso, não é surpreendente que a tarefa analítica tenha sido complexa e possa produzir apreciações de junções de diferentes padrões como o que foi observado na década de 1870. Pode-se afirmar que a notoriedade das ações de Nightingale e a capacidade de explorar esta condição projetou a preponderância de uma figura com qualidades que orientariam os atributos desejáveis para uma enfermeira. De fato, Nightingale era muito exigente com o estabelecimento de educação moral, que apontava para virtudes que deveriam ser exercidas como uma disposição para agir da forma correta e não apenas por dever ou obrigação(16).

No material das décadas de 1880 a 1900, são recorrentes as notícias características das décadas anteriores, salvo pelo aparecimento de uma série de biografias sobre Nightingale; maior detalhamento sobre os princípios de cuidados a pessoas doentes; pontos de vista católico-romanos e protestantes sobre o trabalho de Florence e de sua influência como personalidade inspiradora da Cruz Vermelha.

Neste período, se intensificam as classificações do padrão pessoal de conhecimento, tendo relação com as questões concernentes à menção da tomada de consciência de Nightingale acerca de sua missão de servir ao próximo. O padrão pessoal de conhecimento refere-se à característica de conhecimento de si, sendo considerada essencial para o estabelecimento da relação com o outro(6,15-16). Também surgem nas matérias menções de recortes biográficos sobre a dimensão mais reflexiva de Nightingale, não apenas em relação ao seu chamado para o serviço humanitário, mas também sua auto apreciação acerca de fraquezas, inclinações e características pessoais, o que se conforma claramente como um padrão de conhecimento pessoal da enfermeira.

Algumas matérias continham uma visão romantizada de Nightingale, exacerbando “virtudes elevadíssimas” e apresentando-a como uma figura sacralizada. Algumas biografias apontam traços de caráter diferentes dessa visão sacralizada de Florence, destacando, por exemplo, sua dureza no trato com amigos e sua intransigência com pontos de vista que eram diferentes dos seus(17-19). A precursora da profissão não estava livre dos demais limites humanos cometendo erros e, ainda mais, agindo com ações nem sempre tidas como de resultados satisfatórios ou de unanimidade.

A partir de 1910, verificou-se um novo crescimento no padrão sociopolítico, provavelmente relacionado ao falecimento de Nightingale em 1910 e a explosão de notícias sobre a criação de unidades da Cruz Vermelha, cujo nome de Florence é fortemente associado pela imprensa brasileira.

O padrão empírico do conhecimento surge a partir da década de 1860 se ligando a ideias e ao empiricismo que fizeram de Florence uma mulher de prestígio na sociedade. Conceitos inovadoresde construção de hospitais foram atribuídos a ela, bem como medidas para organização do ambiente. Nightingale foi comunicada como capaz de analisar a realidade e apontar para o Parlamento Inglês erros de administração e descaso no qual eram deixados os soldados na Índia.A fundação de uma Escola anexa ao Hospital S. Thomas, a Escola Prática de Enfermeiras, foi associada pela imprensa como traço de sua conduta, autoridade e de seu conhecimento. O modo pelo qual em sua fala fazia questão de enfatizar a necessidade de um ambiente aberto, arejado e salubre tinha relação com sua filosofia ambientalista(13-14).Na integração do padrão empírico com os conhecimentos estético e pessoal, noticiava-se seu zelo na recomendação de como lidar com bebês e até mesmo quando se viu diante da necessidade de procurar um local com ar puro para tentativa de curar a tuberculose, que lhe afligia. A enfermagem de Nightingale constituía-se na lógica de uma “saúde baseada em evidências (empíricas)” e era paulatinamente construída com o uso da razão e da documentação criteriosa de aplicação de preceitos ambientalistas, por meio da ação de uma mulher questionadora dos padrões de opressão da época e que militava para evitar que a enfermagem ficasse presa às tradições formando uma “mediocridade estereotipada(15,17-18,20).

O traço empírico e os altos padrões éticos, estéticos e sociopolíticos coordenados para uma prática emancipadora provaria que a enfermagem, nos moldes de Florence, iria deixar um legado na Inglaterra que, após difundir-se para a América do Norte, chegaria ao Brasil em 1923. Tudo isso converge para a ideia de que Florence atuou criando uma primeira revolução científica disciplinar da enfermagem, ao modificar o paradigma existente com a incorporação de elementos da ciência empiricista que reconhecia a influência do ambiente sobre as pessoas, e foi capaz de reduzir as taxas de mortalidade de soldados pela introdução de uma ciência sanitária(1,6).

O presente estudo traz aspectos inéditos sobre informações que circulavam sobre a enfermagem moderna no Brasil, de 1850 a 1919, e que estariam comunicando para a sociedade brasileira elementos de um conhecimento multidimensional que Nightingale ia construindo na Inglaterra e em suas colônias, difundindo para outros países. Coloca-se como contribuição trazida pela pesquisa o reconhecimento de que elementos do conhecimento da enfermagem foram difundidos no Brasil antes do estabelecimento da primeira escola para enfermeiras, em moldes nightingaleanos, e de como tais elementos foram relacionados a temas e assuntos jornalísticos.

Limitações do estudo

Entretanto, o estudo não está livre de limitações, pois após a análise, verificou-se que a inclusão de um outro padrão de conhecimento, o emancipatório, poderia ter refinado a categorização de parte do conteúdo classificado como sociopolítico(3). Para que aspectos contextualistas sejam melhor explorados, é necessário aprofundamento na análise indutiva das mensagens, o que levaria a um novo estudo analítico que considere mais detidamente a historiografia da enfermagem no Brasil até a década de 1920, produzindo interpretação das notícias tanto na perspectiva da autoria das matérias quanto nas relações com o contexto político e social do país na época.

Contribuições para a área

Contribuições atuais para a área têm relação como o detalhamento da origem do conhecimento da profissão em uma sociedade pré-nightingaleana. Em países onde o modelo de enfermagem baseado em Florence tornou-se o padrão hegemônico, como o Brasil, torna-se uma atividade incomum imaginar que nos hospitais de Londres, na primeira metade do século XIX, não existia espaço para desenvolvimento de padrões de conhecimento de enfermagem. Isso, porque as atividades das mulheres enfermeiras eram basicamente atividades domésticas femininas, de certo modo entendidas como serventes e não como trabalhadoras do cuidado de saúde(21). Por fim, a notoriedade de Florence na Inglaterra pode ser atribuída, de certa forma, à forte projeção que a imprensa deu à sua ação na Guerra da Criméia, visto ser a primeira vez na história do Reino Unido que uma guerra recebia ampla cobertura, muitas das vezes sensacionalistas(22). A análise parece ter demonstrado a mesma tendência de destacar atributos que pudessem chamar a atenção do leitor, o que tende a gerar narrativas que podem ser exageradas sobre a influência de Florence, exigindo que o conhecimento de enfermagem seja entendido na construção das ações das demais enfermeiras.

CONCLUSÃO

O sistema classificatório por padrões de conhecimento de enfermagem pode ser aplicado a material de natureza jornalística para entendimento de elementos precursores do conhecimento profissional/disciplinar. Os padrões de conhecimento estiveram presentes em todas as matérias analisadas, com predominância da classificação do sociopolítico. Pode-se verificar que a notoriedade de Florence Nightingale foi destacada, a ponto de permitir que suas ideias, conformando o conhecimento da profissão nascente, pudessem ser comunicadas para a sociedade brasileira, antes mesmo do estabelecimento da enfermagem moderna no Brasil.

A Nightingale retratada pela imprensa brasileira tinha traços de altruísmo, heroísmo, competência técnica, elevados padrões morais e humanitários, disciplina no comando, capacidade de liderança, visão sócio-política, contextual e ampliada da realidade, sendo apresentada como protagonista de sua própria história, ou exemplo a ser seguido por mulheres no país. Ao menos parcialmente, a figura de Florence conseguiu extrapolar os limites impostos pela lógica social de dominação da mulher que predominava no país. Suas características, ideias e ações foram noticiadas no Brasil na amplitude de todos os padrões de conhecimento, inclusive na perspectiva de um conhecimento mais bem caracterizado como emancipatório, evidência de certo modo surpreendente diante da estrutura social predominante do período.

  • FOMENTO
    Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2019
  • Aceito
    07 Abr 2020